A dieta mediterrânica não é designada pelo mar, nem pela geografia. É um patrimônio cultural que vai além do Mediterrânico, trata-se de um patrimônio histórico deixado pelos povos que aqui estiveram. As palavras de Jorge Queiroz, sociólogo responsável pela candidatura da Dieta Mediterrânica à categoria de Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO, foram a força motriz para o evento Fair Food Talks realizado na Universidade de Aveiro no último dia 09 de Junho.
A Conferência sobre a Dieta Mediterrânica*, o FairFood Talks, reuniu na Reitoria da Universidade de Aveiro (UA) especialistas e influenciadores da área da alimentação e nutrição, bem como reconhecidos Chefs, para debater a importância da Dieta Mediterrânica, a sua preservação e divulgação. Integrados em painéis, os palestrantes discutiram o estado da arte da Dieta Mediterrânica, em torno das áreas temáticas Educação e Nutrição, Proximidade, Circularidade e Sustentabilidade, Comunicar a Alimentação na Era Digital, e Tradição e Modernidade na Gastronomia.
* No Português do Brasil utiliza-se o termo Dieta Mediterrânea.
O projeto FairFood for a Smart Life
A conferência nasceu da iniciativa do projeto Erasmus+ Fair Food for a Smart Life que visa promover uma alimentação saudável baseada na cozinha tradicional e produtos locais e sazonais, fornecendo ferramentas que contribuam para uma forma de alimentação mais simples, saudável, natural e sustentável.
O consórcio que desenvolve o projeto é formado por seis parceiros de alguns dos países mais representativos da Dieta Mediterrânica (Espanha, Portugal, Itália e Bélgica) e é constituído por universidades, especialistas agroalimentares, consultores e educadores, sendo coordenado pela Professora Ana María Castillo-Clavero, da Universidade de Málaga, e cofinanciado pela Comissão Europeia, para promover a educação nutricional inspirada na forma como os nossos antepassados se alimentavam. Em Portugal, o FairFood é coordenado pela Professora Claudia Amaral Santos, docente e investigadora na Universidade de Aveiro (UA), instituição membro do projeto.
Educação e Alimentação
Dinamizado pela Professora Doutora Margarida Pinheiro, do ISCA da UA, o primeiro painel abordou a relação da Dieta Mediterrânica com a educação e a nutrição. Para Helena Real, nutricionista e Secretária-Geral na Associação Portuguesa de Nutrição, “a dieta mediterrânica não é somente uma componente alimentar” é também uma forma de partilha à mesa, é olhar o alimento com uma história, com uma origem. Helena reforça a importância de transversalidade de ideias na dieta mediterrânica e na sua importância como um modelo base para estudos e programas desenvolvidos na promoção de uma sustentabilidade alimentar.
Artur Gregório, antropólogo e presidente da Associação IN LOCO, a dieta mediterrânica é um estilo de vida, “uma identidade cultural das comunidades onde atuamos”. Essa relação afetiva com o território contribui com a preservação do patrimônio, das tradições e produtos locais. Artur ainda acrescentou que é necessário o envolvimento de todos os atores locais das comunidades de modo a buscar uma comunidade à nível nacional para manutenção da dieta mediterrânica.
Vanessa Santos, do projeto Eco-Escolas, destacou a necessidade de se levar a dieta mediterrânica para as escolas de forma a criar um legado cultural. É importante procurar perpetuar todo este conhecimento e transmiti-lo para os jovens. Vanessa citou diversos trabalhos realizados pelo projeto Eco-Escolas, como as hortas biológicas, e como a transmissão de conhecimento tem ocorrido também dos filhos para os pais. A nutricionista Helena Real, complementa reforçando a importância de projetos como o Fair Food que estão mais acessíveis aos jovens e também da sinergia entre os diversos setores que trabalham na promoção da Dieta Mediterrânica. Para Artur, é importante levar maior informação ao público, porém, sempre com grande atenção para adequação do discurso de acordo com o tipo de audiência.
O sociólogo Jorge Queiroz reforçou que a dieta mediterrânica é um modelo cultural e que a candidatura à Unesco foi gerida, em Portugal, pela área da cultura. Jorge destaca ainda que a Dieta Mediterrânica é reconhecida pela FAO uma das dietas mais sustentáveis do planeta, pela OMS como um padrão de alimentação saudável, para além de ser património cultural e imaterial da UNESCO.
Proximidade, Circularidade e Sustentabilidade.
Neste painel, moderado pela Professora Dra Sara Moreno Pires do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da UA, o debate se fez em torno das transformações necessárias para um consumo mais circular e sustentável.
Márcio Carvalho, da Bancaterra, destaca que “é preciso na agricultura mais planeamento a médio a prazo” para se conseguir maior sustentabilidade na produção e comercialização. Ele ainda menciona a importância das pessoas saberem a origem dos produtos e se conectarem mais com o campo para se estabelecer um principio de proximidade e de localidade.
O consumo de produtos locais também foi um ponto abordado por Berta Godinho, da Beiralacte empresa produtora de queijos DOP da Beira Baixa. Os produtos DOP valorizam a região, sua cultura e contribuem para a redução da pegada ecológica, uma que utilizam somente matérias-primas oriundas da própria região. No entanto, Berta alerta para “a dificuldade em se comunicar esta valor para o consumidor” que não entende os preços mais elevados praticados neste tipo de produtos. Para ela, há falta de informação desde a base e é necessário um trabalho com todos os setores envolvidos para uma mudança de mentalidade. Márcio complementou que é importante fazer “o consumidor perceber as diferenças nos meios de produção” e quanto isso pode impactar no custo do produto final.
A falta de informação também foi mencionada por Elisabete Ferreira, do Clube Richemont de Portugal, relativamente ao consumo de pães. Atualmente o maior consumo de pão está em produtos de baixo valor e que se estragam mais rapidamente, o que faz aumentar o desperdício de alimentos nas residências. No entanto, a indústria já encontrou diversas formas de se reaproveitar as sobras e os resíduos do pão, menciona Elisabete a partir de exemplos práticos.
As sobras não devem ser tratadas como “resíduos, mas sim como recursos”, esclarece Marta Brazão da Circular Economy Portugal. Marta mencionou ações realizadas pela CEP, porém que muitas delas tinham foco no fim de linha, ou seja, quando o desperdício já havia ocorrido. Para Marta é necessário “pensar na raiz, em como não desperdiçar” citando exemplos de projetos de alimentação sustentável realizados em parcerias com o Banco Alimentar, Juntas de Freguesias e Supermercados. Os projetos buscavam levar às famílias quantidades adequadas de alimentos, evitando sobras, e também conhecimento sobre hábitos de consumo, a fim de evitar o envio de produtos “desconhecidos” que poderiam ser desperdiçados.
Comunicar a alimentação na Era Digital
O painel moderado pela Professora Doutora Rocio Torres-Mancera, da Universidad de Málaga, contou com a presença de profissionais que atuam em canais de social media relacionados a alimentação.
Inicialmente, todos os participantes foram convidados a responder o motivo pelo qual comunicam sobre alimentos e alimentação. Uma “comunicação verdadeira” é o que motiva Rui Marques, do canal A Pitada do Pai, no seu papel como influencer. Rui relata procura mostrar em seu canal receitas práticas, rápidas e saudáveis que podem ser executadas por todas as pessoas. A Nutricionista Joana Pinho tem a ambição de “transformar a vida das pessoas através da comunicação no digital” e mostrar que uma boa alimentação não é complicada. Para Joana Amaral, escritora do livro “Faz as pazes com a comida”, a comunicação na nutrição não é somente um ponto único, que saúde e alimentação deve ser vistas por um espectro mais amplo da vida. “Voltar ao básico, sem dietas restritivas” é o que motivou Sophie Deram, escritora do livro “Nutrição com ciência e consciência”, que também busca lutar contra o “terrorismo alimentar que atualmente existe na internet”.
Quando questionados sobre a ética e a responsabilidade do trabalho dos participantes na comunicação, o foco maior esteve sobre como cada atua em seu próprio canal. Joana Pinho entende que ética é dizer claramente para o consumidor quando se está fazendo algum tipo de publicidade paga e que o nutricionista “não pode defender somente uma única marca”. A nutricionista Joana Amaral complementa que hoje há uma dualidade no discurso e o que vende é categorizar os produtos como bons ou ruins. Para Rui, ética é também respeitar o trabalho dos outros colegas e evitar copiar conteúdos; é importante se criar bons conteúdos com muita qualidade e com autenticidade para o público que o segue.
Isabel Ferreira, da Docapesca, reforça sobre a importância de se estudar o perfil do consumidor e as tendências de mercado para se realizar uma comunicação mais efetiva e adequada.
Feira Saberes e Sabores
Além das intervenções nos painéis, o evento pretende contou um espaço para a exposição de áreas diversas ligadas à educação nutricional, incluindo a degustação de alimentos representativos da Dieta Mediterrânica, através da Feira Saberes e Sabores. Nesta feira, os expositores partilharam um objetivo comum de preservação de hábitos e produtos alimentares mediterrânicos, como confrarias, projetos ligados à agricultura, associações de produtos regionais e escolas profissionais ligadas à cozinha e restauração, bem como editoras e empresas do ramo alimentar.
Um tour pela Dieta Mediterrânica
Durante a conferência foram partilhados conceitos e diferentes perspetivas sobre a Dieta Mediterrânica, e como a incorporação dos seus princípios na alimentação diária e no nosso estilo de vida pode ser fonte de saúde, equilíbrio e sustentabilidade.
A Professora Claudia Amaral, demonstrou um dos resultados mais expressivos do projeto Fairfood direcionados, sobretudo, ao público mais jovem. Trata-se de um conjunto de dez cursos de capacitação para alimentação saudável, divididos em dois níveis (básico e avançado); estes cursos abordam diversos temas base da Dieta Mediterrânica em um conjunto de 50 materiais de utilização simples, direcionada e de fácil acesso, disponíveis gratuitamente na plataforma do projeto: https://www.fairfoodproject.eu/training_pt.php
A conferência levantou questões e desafios importantes quanto a dieta mediterrânica em Portugal. Uma das questões importantes relacionadas a ética e a responsabilidade da comunicação é perceber se ela está a ser feita por profissionais legítimos em suas áreas de atuação. Os profissionais que atuam na comunicação devem perceber que a sua maior responsabilidade é levar informação séria e correta para o público, uma vez que o canal digital é fonte de literacia nutricional, como já visto em diversos estudos.
Nota-se ainda uma grande evolução e dedicação dos envolvidos em manter a cultura e as tradições da dieta vivas no território, no entanto, há ainda um grande espaço de melhoria que pode ser preenchido com maior sinergia entre todos os setores e com reforço na literacia a cerca da dieta mediterrânica.
Sobre o Autor
Adriano Andreghetto é Consultor de Marketing Digital com foco no setor Agroalimentar e é atualmente sócio da agência GOMO Digital. É formado em Ciências dos Alimentos pela Universidade de São Paulo, possui um MBA em Marketing Estratégico e é Mestre em Marketing Digital pela Universidade Europeia (Lisboa). Durante sua carreira também já trabalhou com projetos nas áreas de sustentabilidade e desperdício de alimentos, com projetos em Portugal, Suíça e Alemanha. Com mais de 10 anos de experiência nas áreas de Marketing, Comunicação e Marketing Digital, vive em Portugal desde 2017 e é parceiro da Verakis desde 2019.
Imagens cedidas pelo projeto Fair Food for a Smart Life