O fazer culinário artesanal tem aparecido de forma constante nas discussões atuais sobre a culinária brasileira, acompanhando a movimentação internacional. A partir do turismo, identificá-lo é entendido como uma maneira eficaz de valorização das cozinhas regionais e que precede oportunidades múltiplas de crescimento econômico.
Dória, em “Quando a política se interessa pela cozinha“(1), amplia a importância de observarmos este cenário com mais atenção. A definição de uma gastronomia nacional também pode receber a atuação de forças orientadas por interesses de ordem política, econômica e ideológica. No cenário internacional, comenta tanto os modelos francês e catalão como estudos mais amplos e críticos sobre o assunto.
Ambos deram passos mais largos à medida que mapearam esses fazeres culinários. Inventariar a produção artesanal poderia ser, então, uma forma de contribuir na sistematização da diversidade da culinária brasileira. Em 2019 foi aprovada uma iniciativa oficial que atua nessa situação, o Selo ARTE.
O Selo ARTE (2) é uma atualização da regulação jurídico-sanitária vigente no Brasil para produtos culinários artesanais feitos a partir de matérias-primas de origem animal.
Foi estabelecido3 pela lei federal 13.680/18 em 14 de junho de 2018 e regulamentado pelo decreto 9.918/19 de 18 de julho de 2019 visando certificar que produtos de fazer artesanal como queijos, embutidos, pescados e meles possam ser comercializados em todo território nacional de forma segura e formalizada.
Dado que a regulação anterior datava da década de 50, é relevante consideramos o marco que representa essa ação ao trazer à tona a questão do fazer culinário artesanal nacional. No entanto, como o contexto complexo, é preciso avaliar suas consequências práticas em relação aos principais atores disso, os detentores dos saberes tradicionais sobre o patrimônio culinário.
Em “Selo Arte: mais do mesmo?”(4), o SlowFood Brasil nos convida a refletir em que medida essa certificação realmente fomenta a saída da clandestinidade pelos pequenos produtores e favorece sua inclusão na cadeia produtiva, promovendo a justiça social.
Isso porque o Selo ARTE, além dos custos de implementação das normas para o produto, necessita de outra formalização prévia no Serviço de Inspeção do Município do Estado no qual se localiza, em relação às instalações físicas. Essas normatizações seguem custosas para pequenos produtores que, sem isso, não conseguem ampliar seus acessos a novos mercados. (4)
Na prática, também permanece ainda sem solução uma questão essencial: quem é o(a) pequeno(a) produtor(a) artesanal ou artesão(ã) culinário(a) brasileiro(a)? Quais são as características concretas que definem o volume e a qualidade dessa produção? O que diferencia um produto agroartesanal de um agroindustrial?
A importância de solucionarmos essa questão pode ser, talvez, a diferença entre integrar ou não esses detentores do fazer culinário artesanal na cadeia produtiva. Do contrário, o Selo ARTE pode trazer benefícios de marketing (”gourmetização”) somente à uma parcela de profissionais (liberais ou neorrurais) já capitalizados (4) . Passados um ano dessa regulamentação, a base de dados do Selo ARTE (5 ) pode ser um ponto de partida para essa reflexão.
Nos “Brasis” culinários a transformação acontecerá quando os instrumentos e a metodologia de valorização desses produtos estiverem realmente ao alcance dos(as) detentores(as) desses saberes tradicionais e que tenham um apoio de assistência técnica a longo prazo.
Afinal, são elas e eles os responsáveis tanto pela continuidade histórica que dão notoriedade, distinção e credibilidade a essas produções culinárias no mercado o que, por si só, justificaria sua inclusão e protagonismo no processo. 7
Definir a semântica do artesanato culinário brasileiro nos aproximará não só de uma cozinha brasileira menos ilusória como também mais democrática.
Por Paula de Oliveira Feliciano
Paula de Oliveira Feliciano é mestra em Culturas e Identidades Brasileiras pelo IEB/USP, graduada em Gastronomia e pós-graduada em Docência para o Ensino Superior. Atua como chefe de Projetos Verakis Brasil e como professora nos cursos de graduação e pós-graduação em Gastronomia no Centro Universitário Senac Campos do Jordão. Em 2018, passou pelo programa de estágio da Fundació Alícia/Espanha, centro de pesquisa em cozinha, sustentabilidade e impacto social. E, em 2019, pelo Observatori d’Alimentació da Universitat de Barcelona (ODELA-UB), acompanhou atividades na linha de pesquisa turismo gastronômico.
Saiba mais
1DÓRIA, Carlos Alberto. Quando a política se interessa pela cozinha. In A culinária materialista: construção racional do alimento e do prazer gastronômico. p.65-121. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009.
2MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO (MAPA). Manual Selo ARTE. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/producao-animal/selo-arte/publicacoes/SELOARTEv2.pdf > Acesso em dez 2020.
3________ Regulamentação – Selo ARTE. Disponível em: Acesso em dez 2020.
4SLOW FOOD BRASIL. Selo Arte: mais do mesmo? Disponível em: Acesso em dez 2020.
5MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO (MAPA). Cadastro Nacional de Produtos Artesanais – Base de Dados Selo ARTE. Disponível em: Acesso em dez 2020.
6BRAGA, Marco Aurelio. O lugar dos alimentos artesanais na legislação brasileira. Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/academico/2020/07/02/O-lugar-dos-alimentos-artesanais-na-legisla%C3%A7%C3%A3o-brasileira#:~:text=Ao%20inv%C3%A9s%20de%20receber%20fomento,leite%20cru%20seria%20%E2%80%9Ctolerada%E2%80%9D. > acesso em dez 2020.
7SUREMAIN, Charles-Édouard de ;MATTA, Raúl. Comer lo tradicional o la producción de un patrimonio alimentario desigual (Lima, Peru). In Gastronomía y turismo en Iberoamérica MEDINA, F. Xavier. LODOÑO, María del Pilar Leal (Org.). Gastronomía y turismo em Iberoamerica. Gijón: Ediciones Trea, 2018.
Imagem: http://www.agricultura.df.gov.br/selo-arte-e-regulamentado-pelo-governo/