O filme “A baleia” não fala de obesidade

O filme “A baleia” fala mais de conflitos emocionais e dificuldades de superação do que sobre obesidade. O filme é mais profundo do que algumas atitudes que podem ser clichês ou atitudes retradas para o personagem do dito filme.
O filme, baseado numa peça de teatro, centrado na pessoa do Charlie, na vida, nas escolhas dentro do CONTEXTO dele deve ser interpretado dentro desse contexto.
Aqui abro uma digressão: sim, podemos incluir nesse contexto um sistema de saúde falho,
saúde pública inexistente e de difícil acesso por ser custoso. No caso do Charlie,
principalmente um sistema de saúde que dê conta de saúde mental, luto complicado,
tratamento a longo prazo para depressão que, no momento, nos EUA é algo muito caro.
É sobre escolhas que ele fez e não tem nenhuma pretensão em dizer que é assim que todas
as pessoas gordas/com obesidade vivem. Não! É assim que o Charlie vive. Na verdade, eu
acho muito bom que as pessoas não tenham se identificado e se incomodado com a
narrativa, que tenham traçado esse limite de: não, essa história não me representa. Arte é
isso. Existe para incomodar, para nos fazer refletir se há ou não identificação. É um
exercício importante pensar em quais elementos minha vida se encontra com a vida do
Charlie ou não.
Eu entendo a revolta que isso causou de “mais uma pessoa gorda retratada como doente”,
porém, sob meu olhar, estamos diante de desdobramentos de questões de saúde mental
não tratadas. O que vemos ali são episódios de “self-harm” (autoflagelação) de longo prazo.
Esse auto infligir é uma estratégia para lidar com problemas e questões emocionais
utilizada por pessoas que estão mal psicologicamente, estão dissociadas de seus próprios
corpos, e não tiveram oportunidade de desenvolver estratégias autorregulação melhores
para lidar com o sofrimento emocional. Charlie mostra que às vezes a vida é muito difícil.
A narrativa é repleta de personagens complexas: a filha de Charlie, Ellie, que sente o vazio
do abandono pelo pai e tem sentimentos ambivalentes de querer puni-lo, fazê-lo sofrer ao
mesmo tempo que deseja restabelecer uma relação. Ela tem raiva e ódio mal resolvidos
que também regem suas ações em relação ao pai e a vida.
Charlie carrega culpa, ressentimento, tristeza, luto, uma falta de autocompaixão
provavelmente por se sentir culpado pelo abandono da filha, e pela morte do companheiro, contudo é otimista em relação às outras pessoas: quer que os outros vivam bem, e sejam honestos consigo mesmos e em seus relacionamentos.
E a recusa dele ir para o hospital é algo consciente e um dos motivos que fica claro: ele
quer guardar o dinheiro para a filha. Nesse caso, no contexto dele, ele teve essa escolha
porque ele era uma pessoa bem informada, ele tinha ferramentas para tomar decisões.
Porém, é o que a amiga Liz dele fala: “ninguém salva ninguém”.
Ela é a pessoa que mais respeita as vontades dele. E eu acho que foi uma boa representação dos profissionais de saúde: a gente não pode ir aonde o indivíduo não quer. A Liz estava ali para apoiá-lo, oferecendo caminhos e ferramentas, porém não obrigando o Charlie a nada.
Acredito que seja esse o papel dos profissionais de saúde: mostrar caminhos para os pacientes, porém respeitando seus limites e vontades.
O que eu vi foi uma história que aborda o que uma sociedade conservadora e homofóbica
pode causar na vida das pessoas, além do luto complicado e uma depressão severa, sem
suporte, sem apoio, sem tratamento de longo prazo em termos de saúde mental.
O parceiro de Charlie morreu no outro extremo, ele não conseguiu se livrar
das crenças homofóbicas da religião, as quais cresceu ouvindo, e parou de comer. Eu fiquei
muito surpresa do quanto o formato do corpo de Charlie tomou protagonismo na história
pelos olhos de quem viu o filme, porém, acho que até o próprio diretor suspeitava que isso
poderia acontecer quando o trecho do ensaio sobre Moby Dick retorna algumas vezes ao
longo da narrativa: o capítulo em que o autor descreve baleias é para desviar o leitor de sua história triste.
A descrição de Charlie relacionada à baleia seria também para desviar os espectadores de sua triste história?
De modo geral, não é um filme “gostoso” de assistir e esse diretor sempre aborda assuntos
polêmicos em suas obras. Porém, o papel da arte é esse: incomodar, tirar-nos da zona de
conforto e nos fazer refletir sobre questões complexas, envolvendo religião, identidade
sexual, políticas públicas, relacionamentos e outras tantas coisas.
Cada obra que pode ser vista por diversas perspectivas e depende do espectador. Mas talvez fôssemos mais honestos se pensassemos mais sobre o que sentimos ao vê-lo, refletir mais sobre o contexto e aspectos mais profundos da narrativa do que pararmos na superficialidade do julgamento de termos um personagem “simplemesnte com obesidade”.
Não esse filme nao fala de obesidade, fala de dramas emocionais complexos.
Isis Stelmo
Imagem: istvangyal