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2021

Desertos alimentares e insegurança alimentar

Discussões sobre desertos alimentares são fundamentais para a segurança alimentar e a gastronomia no combate à desigualdade nutricional.

As discussões em torno dos desertos alimentares são intrínsecas às de segurança alimentar, considerando a necessidade de se garantir o acesso ao alimento saudável em quantidade, valor e variedade adequadas, prezando também pelo seu modo de produção e distribuição sustentáveis. Uma das frentes com poder para combater cenários de vulnerabilidade alimentar é a gastronomia, seja ela atuante dentro dos restaurantes, ou seja na produção e distribuição dos alimentos.

Existem diversas áreas de estudo possíveis para se explorar a alimentação humana, relacionando-a a comportamentos culturais, variabilidade econômica e social da população, espaço geográfico, distribuição e acesso ao alimento, contexto histórico, entre outros. Assim, o recente uso do termo Deserto Alimentar surge para relacionar tais questões com a desigualdade de acesso ao alimento (CAISAN, 2019).

Diversos estudos relacionam a deficiência nutricional e suas consequências na saúde humana com as condições econômicas da população. Duran (2013), associa o desenvolvimento urbano das cidades brasileiras com a desigualdade social e como isto impacta na escolha alimentar da população, afirmando que a cultura alimentar está diretamente relacionada ao acesso a mercados e restaurantes, disponibilidade, preço e qualidade dos alimentos.

Dessa maneira, o Deserto Alimentar vem associado ao estudo de Segurança Alimentar e Nutricional, que constitui no “direito de cada pessoa ter acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada e saudável ou aos meios para obter essa alimentação, sem comprometer os recursos para assegurar outros direitos fundamentais, como saúde e educação. ” (BRASIL, 2014).

No Brasil, a CAISAN (Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional) disponibilizou em 2018 uma cartilha em que define e mapeia os desertos alimentares no Brasil. De acordo com o documento, o termo “Deserto Alimentar” surgiu pela primeira vez em 1995 pelo governo escocês ao discutir assuntos relacionados a nutrição. Assim, um deserto alimentar é definido por “áreas urbanas onde os moradores não têm acesso a uma dieta saudável”, seja pelo difícil acesso e/ou pela escassez de alimentos saudáveis.

A partir de 2011, a USDA – United States Department of Agriculture (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos) iniciou um conjunto de pesquisas para compreender o aumento da obesidade e de doenças relacionadas a alimentação na população americana. Assim, surgiu a necessidade de localizar as regiões em que o acesso a alimentos saudáveis fosse escasso, possibilitando a aplicação de práticas governamentais que estimulassem a abertura de comércios varejistas que ofertassem esse tipo de produto. Dessa maneira, a organização definiu o “deserto alimentar” como a “região na qual pelo menos 500 pessoas, ou 33% de um determinado setor censitário, residem a mais de 1,6 km de um supermercado ou mercearia” (CAISAN, 2019, p. 5).

Devido ao enorme crescimento da indústria alimentícia ao redor do mundo, a disponibilidade de alimentos altamente calóricos, mas nutricionalmente deficientes, impactou significativamente a cultura alimentar da sociedade moderna. Tais alimentos são relativamente baratos e altamente promotores (vendidos pelo marketing de praticidade e economia). A criação de ambientes alimentares saudáveis torna-se necessária à medida que são capazes de moldar hábitos alimentares da população, principalmente das inseridas em regiões socialmente desfavorecidas (SWINBURN, B. et al. 2013).

No documento publicado em 2013 por Swinburn et al. (2013), o “INFORMAS – International Network for Food and Obesity/non‐communicable diseases Research, Monitoring and Action Support): overview and key principles” (INFORMAS – Rede Internacional de Pesquisa, Monitoramento e Apoio à Ação em Alimentação e Obesidade/doenças não transmissíveis: visão geral e princípios-chave), é apresentado a definição de alguns termos que compõem um ambiente alimentar, sendo eles:

Tabela 1: Definições de termos envolvendo Ambiente Alimentar Ambientes Alimentares O ambiente físico, econômico, político e sociocultural coletivo, oportunidades e condições que influenciam as escolhas de alimentos e bebidas das pessoas e o estado nutricionalAmbientes Alimentares Saudáveis Ambientes em que os alimentos, bebidas e refeições que contribuem para uma dieta populacional que atendem às diretrizes alimentares nacionais estão amplamente disponíveis, com preços acessíveis e amplamente divulgadosAcesso a Alimentos O conceito de acesso a alimentos tem cinco dimensões: disponibilidade, proximidade, acessibilidade, aceitabilidade e acomodação/conveniência.Soberania Alimentar O direito dos indivíduos a alimentos saudáveis e culturalmente adequados, produzidos por métodos socialmente justos e ecologicamente sensíveis. Implica o direito das pessoas de participar da tomada de decisões e definir seus próprios sistemas de alimentação, agricultura, pecuária e pesca.

Neste mesmo documento, é ilustrado como um ambiente alimentar é moldado a partir de influências externas e as individualidades das pessoas, formando assim o padrão alimentar:

Um estudo publicado por Martins et.al. (2020 apud VERAKIS&LaDEx, 2020), aborda como a diminuição dos saberes culinários dos pais influenciam significativamente nas escolhas alimentares dos filhos, indicando que quanto menos contato as crianças possuem com uma alimentação feita em casa, maiores são as chances de desenvolverem hábitos e paladar propícios para optarem por alimentos ultra processados e fast-food. Esta abordagem está intimamente ligada ao Guia Alimentar da População Brasileira, que indica o desenvolvimento de habilidades culinárias como vetor de combate e promoção a uma alimentação saudável (VERAKIS, 2020). Assim, o desenvolvimento de habilidades culinárias torna-se um dos pontos de atuação da gastronomia em benefício de uma alimentação saudável para todos.

A cartilha de Mapeamento dos Desertos Alimentares no Brasil publicada pela CAISAN em 2019 leva em consideração as dimensões físicas no acesso ao alimento, como a disponibilidade e proximidade de alimentos saudáveis ou não entre domicílios e estabelecimentos de comercialização de alimentos.

Texto: Ana Lívia Miranda Miguel e Alan Cesar Grassi

Curadoria e edição de texto: Paula de Oliveira Feliciano

Edição/popularização científica: Juliana T. Grazini dos Santos

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira / Ministério da Saúde, Secretaria de atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. – 2. ed., 1. reimpr. – Brasília : ministério da saúde, 2014. Disponível em:< https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf> Acesso em fev 2021.

CAISAN. Mapeamento dos Desertos Alimentares no Brasil. Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional – 2. Ed. – revisada – 2019.

DURAN, Ana Clara da Fonseca Leitão. Ambiente alimentar urbano em São Paulo, Brasil: avaliação, desigualdades e associação com consumo alimentar. 2013. Tese (Doutorado em Nutrição em Saúde Pública) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. doi:10.11606/T.6.2013.tde-02102013-164136. Acesso em: 2020-07-06.

MIGUEL, Ana Lívia Miranda. GRASSI, Alan Cesar. Segurança Alimentar e Nutricional: iniciativas gastronômicas contra desertos alimentares na Serra da Mantiqueira e São Paulo. 2021. Trabalho de conclusão de curso. Centro Universitário Senac Campos do Jordão. Pós-graduação em Cozinha Brasileira.

SWINBURN, B. et al. 2013. INFORMAS (International Network for Food and Obesity/non-communicable diseases Research, Monitoring and Action Support): overview and key principles. Acesso em: 2020 – 07 – 06. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/obr.12087

VERAKIS & LaDEx. Habilidade culinária dos pais e a relação do consumo de alimentos pelos filhos. Disponível em: < https://verakisfr.wixsite.com/acomidacomciencia/post/habilidade-culin%C3%A1ria-dos-pais-e-a-rela%C3%A7%C3%A3o-do-consumo-de-alimentos-pelos-filhos > Acesso em mar 2021.

Ana Lívia Miranda Miguel e Alan Cesar Grassi são alunos do curso de pós-graduação em Cozinha Brasileira do Centro Universitário Senac Campos do Jordão e escreveram esse texto como uma atividade complementar à entrega do trabalho de conclusão de curso. A publicação integra proposta de aprendizado sobre popularização e difusão científica das ciências dos alimentos e alimentação da Fundação Verakis com o Centro Universitário Senac Campos do Jordão.

Paula de Oliveira Feliciano é mestra em Culturas e Identidades Brasileiras pelo IEB/USP, graduada em Gastronomia e pós-graduada em Docência para o Ensino Superior. Atua como chefe de Projetos Verakis Brasil e como professora nos cursos de graduação e pós-graduação em Gastronomia no Centro Universitário Senac Campos do Jordão. Em 2018, passou pelo programa de estágio da Fundació Alícia/Espanha, centro de pesquisa em cozinha, sustentabilidade e impacto social. E, em 2019, pelo Observatori d’Alimentació da Universitat de Barcelona (ODELA-UB), acompanhando atividades na linha de pesquisa turismo gastronômico.

Juliana T. Grazini dos Santos – Doutora em Informação e Comunicação/Jornalismo Científico/Popularização Científica pela Universidade de Paris 7(Denis -Diderot), vive há mais de 20 anos na França, onde pesquisa e desenvolve trabalhos de jornalismo científico, popularização da ciência e comunicação nas áreas de alimentos, alimentação e nutrição; presidente da Verakis (França), conceptora e diretora do curso de Especialização em Marketing de Alimentos Verakis (Europa); membro do grupo de estudos de informação ao consumidor do Fundo Francês para Alimentação e Saúde (FFAS) e curadora de cursos na área de alimentos e alimentação na Europa, América Latina e Brasil.

Imagem: susannp4