A origem da doçaria brasileira pode ser comparada à uma colcha de retalhos em que 3 povos (Nativos, Africanos e Lusos) com culturas muito diferentes e poderes desiguais, são amarrados por fios de açúcar e dão origem a uma só doçaria nacional.
O sabor doce chegou ao Brasil junto das navegações, para fins econômicos, e carregando consigo a escravidão em nosseterritório. Marcas históricas que, se não destacadas, poderiam reduzir o ingrediente proveniente da cana-de-açúcar a uma insignificância que não pertence a ele.
“O açúcar era então coisa rara, privilégio de nobres e abastados, vendidos em farmácia para curar doenças respiratórias, como cicatrizante e como calmante” (CAVALCANTI, 2020, p.5).
Também foi considerado especiaria já que a coroa portuguesa encontrou no Brasil o solo rico, úmido e especialmente, quente, possibilitando a produção desse “ouro em pó” sem os desafios da sua produção na Europa (CAVALCANTI, 2020).
Dessa forma, tal “ouro branco” estabeleceu um sistema comercial a partir dos canaviais, globalizando uma “relação entre Ocidente e Oriente” (LODY, 2017) e com o passar do tempo “O Brasil, terra do açúcar, tornou-se mais famoso que o Brasil, terra da madeira e da tinta” (CAVALCANTI, 2020, p. 1).
Para sustentar tal produção era necessário mão-de-obra. Os imigrantes europeus não conseguiram sustentar a produção com a mão-de-obra nativa escravizada porque, naquele contexto, eram considerados pouco produtivos e “indômitos”.
O comércio negreiro se tornou uma “solução” muito viável para os problemas enfrentados pelos donos dos engenhos no Brasil, escravizando mais de 4 milhões de pessoas.
Com toda essa mudança que estava acontecendo no Brasil, os primeiros a serem vítimas das influências dos engenhos foram os nativos, uma vez que o sabor doce mais comum para os índios era o mel de abelha, que misturavam com frutas (CAVALCANTI, 2020).
O uso do açúcar em outras receitas se inicioucomo uma adaptação aos produtos da terra tropicais, regionais com destaque para as frutas (LODY, 2017). Daí as famosas compotas e doces de frutas brasileiros.
Com o tempo e a grande valorização do açúcar, o requinte à mesa, na época, era visto percebido pela presença e quantidade de doces. Novas receitas eram criadas por mulheres africanas escravizadas para compor as “pirâmides de açúcar” (LODY, 2017).
A confeitaria oriunda dos nobres da época, portanto oriunda de Portugal, completa o último retalho dessa influência no Brasil.
Uma confeitaria europeia pautada na fé, os doces eram feitos à base de gemas e caldas de açúcar, pois as claras tinham outros fins nos conventos (CAVALCANTI, 2020).
Raul Lody (2017) define a confeitaria dos colonizadores como receitas que adoçam bocas e reinos e são também receitas para celebrar a fé em Deus, sempre louvado à mesa.
A doçaria brasileira já nasce globalizada, com receitas de diferentes lugares do mundo e em meio a multiplicidade cultural presente no país (LODY, 2017).
Exatamente assim é a origem da confeitaria brasileira, 3 povos com culturas muito diferentes e poderes desiguais são amarrados por fios de açúcar e dão origem a uma só doçaria nacional.
Texto: Vitor Themer de Campos
Curadoria e edição de texto: Paula de Oliveira Feliciano
Edição/popularização científica: Juliana T. Grazini dos Santos
Vitor Themer de Campos é aluno do curso de graduação em Tecnologia em Gastronomia do Centro Universitário Senac Campos do Jordão e escreveu esse texto como uma atividade da matéria Estudos Contemporâneos de Gastronomia. A publicação integra proposta de aprendizado sobre popularização e difusão científica das ciências dos alimentos e alimentação da Fundação Verakis com o Centro Universitário Senac Campos do Jordão.
Paula de Oliveira Feliciano é mestra em Culturas e Identidades Brasileiras pelo IEB/USP, graduada em Gastronomia e pós-graduada em Docência para o Ensino Superior. Atua como chefe de Projetos Verakis Brasil e como professora nos cursos de graduação e pós-graduação em Gastronomia no Centro Universitário Senac Campos do Jordão. Em 2018, passou pelo programa de estágio da Fundació Alícia/Espanha, centro de pesquisa em cozinha, sustentabilidade e impacto social. E, em 2019, pelo Observatori d’Alimentació da Universitat de Barcelona (ODELA-UB), acompanhando atividades na linha de pesquisa turismo gastronômico.
Juliana T. Grazini dos Santos – Doutora em Informação e Comunicação/Jornalismo Científico/Popularização Científica pela Universidade de Paris 7(Denis -Diderot), vive há mais de 20 anos na França, onde pesquisa e desenvolve trabalhos de jornalismo científico, popularização da ciência e comunicação nas áreas de alimentos, alimentação e nutrição; presidente da Verakis (França), conceptora e diretora do curso de Especialização em Marketing de Alimentos Verakis (Europa); membro do grupo de estudos de informação ao consumidor do Fundo Francês para Alimentação e Saúde (FFAS) e curadora de cursos na área de alimentos e alimentação na Europa, América Latina e Brasil.
Referências
CAVALCANTI, Maria Lecticia Monteiro. Prefácio. In FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do nordeste. 1ª edição digital. São Paulo: Global Editora, 2020.Disponível em: https://www.google.com.br/books/edition/A%C3%A7%C3%BAcar/V_f_DwAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&printsec=frontcover> Acesso em maio 2021.
LODY, Raul. Vocabulário do açúcar: histórias, cultura e a gastronomia da cana sacarina no Brasil. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2017.
SOARES, Cecília Moreira. As ganhadeiras: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX. Centro de Estudos Afro-orientais da UFBA. Afro-Ásia, Salvador, v. 1, ed. 17, p. 57-71, 1996. DOI http://dx.doi.org/10.9771/aa.v0i17.20856. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20856. Acesso em: 18 maio 2021;