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2020

Do peru à brasileira ao peru com farofa

"Estudo da origem do peru na culinária europeia e brasileira, sua influência e receitas históricas como 'Dindonneau à la brésilienne'."

O peru é uma ave nativa das Américas que foi levada para a Europa pelos jesuítas que passaram pelo continente.

Jean Anthelme Brillat-Savarin, em “A Fisiologia do Gosto“, disserta sobre as virtudes culinárias da ave e sua presença na mesa francesa do século 19.

No Brasil, no mesmo período, encontram-se registros de uma receita com essa ave assada e que figurava em banquetes especiais: o “Dindonneau à la brésilienne”.

A receita de “Dindonneau à la brésilienne” tem raízes nos tempos imperiais.

Lellis e Bocatto apresentam considerações históricas sobre o prato. Segundo os autores, essa produção culinária poderia assemelhar-se ao “Faisan à la brésilienne”, preparação presente na obra La Grande Cuisine Simplifiée, de 1845.

Ela consistiria em: “um faisão recheado com foie gras, carne de galinhola, toucinho e especiarias. Envolto em papel manteiga, colocado em uma frigideira e depois assado com vinho de Málaga. Depois de assado é trinchado e disposto em uma travessa, acompanhado de croûtons guarnecidos com purê de galinhola. É servido com molho Périgueux (à base de vinhos e trufas). Esse prato era servido como entrada”

Embora não seja possível confirmar a influência direta desse prato no “Dindonneau à la brésilienne”, sendo “temeroso fundamentar uma análise conclusiva nos poucos documentos (…)” fica patente que a terminologia à la brésilienne surgiu no receituário francês (nos livros de receitas impressos no Brasil a formulação teria “surgido somente em 1900”).

Os autores preferem descrever a receita do “Dinde à la brésilienne”, ou Peru recheado à brasileira, conforme expresso na obra O Cozinheiro Popular (primeira edição – 1917) e afirmam que esse “era o principal prato da cozinha brasileira e o mais aguardado nos banquetes do Império”: “Toma-se o peru, depena-se, abre-se, limpa-se, enche-se com um recheio feito pela seguinte forma: toma-se um pouco de carne de porco, um pouco de presunto, toucinho, os miúdos do peru, depois de aferventados, ovos cozidos duros, salsa e cebolas verdes, cebola seca e pimenta comari; pica-se tudo bem miúdo e amassa-se com um pouco de miolo de pão, amolecido em vinho, adicionando-se manteiga, farinha de amendoim torrado e um pouco de sal. Enche-se com esse recheio o papo do peru no espeto, lardeia-se-lhe o peito de toucinho, põe-se o peru no espeto, envolve-se em um papel untado de manteiga e assa-se”

A mesma produção culinária é presença marcante na coleção de cardápios do poeta parnasiano Olavo Bilac (1865-1918)3, que residiu no Rio Janeiro. O prato está presente em diversos outros menus dessa coleção, sendo o último datado de 1916, em evento em Belo Horizonte, no qual aparecerá traduzido para o português: “Peru à brasileira”.

A receita também aparece em menus da coleção do intelectual modernista Mário de Andrade. Entre 1915 e 1940 Mário colecionou cardápios de banquetes importantes que frequentou em restaurantes de hotéis paulistanos tais como “Rôtisserie Sportsman” (1915), “Salão Trianon” (1927), “Hotel Terminus” (1937) ou ainda na célebre residência denominada “Vila Fortunata” (1924), que esteve localizada na atual Avenida Paulista. Na maioria dos eventos a receita estava com a nomenclatura francesa.

Há na coleção de Mário de Andrade um único documento (datado de 1931) no qual a receita aparece escrita em português e detalha-se a natureza do recheio da ave: peru com farofa. Mesmo sem conter a indicação do motivo ou local da celebração, resta a beleza do cardápio, ilustrado por Tarsila do Amaral, e o tom lúdico na descrição das demais nomenclaturas dos pratos.

Embora seja pouco possível afirmar ou confirmar a continuidade histórica de receitas, o peru recheado com farofa vai se estabelecendo como uma produção culinária festiva que é destaque na mesa brasileira até nos dias de hoje. A farofa, referência da cultura culinária nacional, traz também o sabor especial da diversidade à medida que cada família tem sua própria forma de elaborá-la.

Paula de Oliveira Feliciano – São Paulo, 25 de dezembro de 2020.

Paula de Oliveira Feliciano é mestra em Culturas e Identidades Brasileiras pelo IEB/USP, graduada em Gastronomia e pós-graduada em Docência para o Ensino Superior. Atua como chefe de Projetos Verakis Brasil e como professora nos cursos de graduação e pós-graduação em Gastronomia no Centro Universitário Senac Campos do Jordão. Em 2018, passou pelo programa de estágio da Fundació Alícia/Espanha, centro de pesquisa em cozinha, sustentabilidade e impacto social. E, em 2019, pelo Observatori d’Alimentació da Universitat de Barcelona (ODELA-UB), acompanhou atividades na linha de pesquisa turismo gastronômico.

Fontes

  1. SAVARIN, Brillat. A fisiologia do gosto. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  2. LELLIS, Francisco; BOCATTO, André. Os banquetes do imperador: menus colecionados por Dom Pedro II. São Paulo:Editora Senac São Paulo, 2013. Trechos em destaque, páginas 376-377.
  3. GARCIA, Lúcia. Para uma história da belle epóque: a coleção de cardápios de Olavo Bilac. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011.
  4. FELICIANO, Paula de Oliveira. Modernistas à mesa: a coleção de cardápios de Mário de Andrade (1915-1940). Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Culturas e Identidades Brasileiras. Área de concentração: Estudos Brasileiros. 2019.
  5. Podcast Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Episódio número 82. A coleção de cardápios de Mário de Andrade (1915-1940). 2020. Disponível em: <https://anchor.fm/difusieb/episodes/082–A-coleo-de-cardpios-de-Mrio-de-Andrade-1915-1940-por-Paula-de-Oliveira-Feliciano-ehp0el>