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2020

“Nós comeremos melhor amanhã!” – Parte I

"Texto sobre reflexões e futuras mudanças na alimentação pós-crise, por Marcon, Agostini, Lavelle."

“Nós comeremos melhor amanhã” (“Nous mangerons mieux demain!”), um texto entre crônica, relato e poesia, escrito por Régis Marcon, Fanny Agostini e Christophe Lavelle, publicado no blog francês, A tabula, que dividimos em duas partes, e fizemos questão de traduzir para os leitores lusófonos se deleitarem.

Parte 1

“As cozinhas estão silenciosas, a sala está vazia, há uma atmosfera estranha nesses restaurantes, onde geralmente os sons das conversas se misturam com os do serviço. Os museus também se esvaziaram, tornando-se guardiões de coleções e conhecimentos agora privados de todos.

Esse silêncio inquieto, inédito, também é um bom momento para repensar nossas atividades, deixar a efervescência empolgante, mas exaustiva, que era nossa vida cotidiana “ de antes”, para finalmente dedicar um tempo para refletir, serenamente, pragmaticamente para o mundo em que queremos viver “depois”.

“Nada mais será o mesmo”, repetimos como um novo mantra. Ingenuidade? Otimismo? Utopia do pensamento mágico? “Tudo voltará a ser como era antes, mas pior”, responderam os pessimistas. Vamos deixar isso de lado: o cinismo, embora tingido de realismo, não pode ser nosso motor para o futuro.

Porque essa crise pode (deve?) ajudar-nos a mudar em muitos assuntos: nosso estilo de vida diário, a corrida pelo lucro, o nosso relacionamento com os outros e com o meio ambiente. Esse tempo de isolamento forçado nos leva a refletir sobre nossos valores, sobre nossos erros, para deixar tudo claro; mas o que restará de nossas boas intenções, fruto dessa onda de introspecção e autocrítica, quando a atividade recomeçar? Será que essa busca de significado, esses desejos de generosidade, de abertura, de compartilhamento, fantasiados na solidão de nosso confinamento, resistirão às dificuldades do mundo real?

Ninguém pode prever o futuro, mas nada seria tão triste quanto perder a oportunidade que esta crise nos oferece, de um questionamento real de nossos estilos de vida e suas aberrações. Então, sejamos otimistas engajados, porque se nada deve ser o mesmo que antes, melhor fazer que seja uma mudança positiva! Existem muitas possibilidades para isso. Não há nenhuma lição a ensinar; apenas um ponto de vista, em nossos respectivos papéis de cozinheiro e cientista, transmissor de emoções e conhecimentos, para alimentar a reflexão e a ação coletiva. Compartilhar é essencial. A mesa é um lugar maravilhoso para isso, e a comida, uma preocupação diária que deve de estar no centro de nossas reflexões.

Repensando a produção de alimentos

Com esta crise de saúde, descobrimos a posição estratégica do setor agrícola. É hora de trabalharmos juntos para reconciliar os cidadãos e sua agricultura.

Após a última guerra, o objetivo era alimentar a França; nosso país então embarcou em uma corrida frenética, mas necessária, pela eficiência: mecanização e química ajudaram os produtores. O objetivo, estabelecido pela PAC (Política Agrícola Comum), de alcançar a auto-suficiência alimentar é louvável, mas a que preço aceitamos alcançá-lo? Alimentar os franceses sim, mas não suprimindo a qualidade, a biodiversidade, o bem-estar animal, o direito dos produtores de viver decentemente com seu trabalho. Métodos agrícolas ecologicamente corretos, pesca mais diversificada e razoável, métodos agrícolas decentes, remuneração justa pelo trabalho são condições básicas de uma política agrícola digna.

Uma revolução já está em andamento, germinando na cabeça dos consumidores, nos campos, na indústria de alimentos, nos circuitos de distribuição, em nossas cozinhas e nas aspirações de nossa juventude. Cabe a nós vencer esse desafio, que envolverá um trabalho coletivo e concertado de todos os atores da cadeia alimentar, incentivado por uma demanda cada vez mais alta dos consumidores por alimentos que preservem ao mesmo tempo nossa saúde e nosso ambiente.

Mas as escolhas que devem ser adotadas não são simples e levantam dúvidas legítimas. Os consumidores não precisam apenas ser informados, mas, acima de tudo, precisam confiar nas informações fornecidas. Os camponeses precisam mais do que nunca de ter visibilidade para construir o futuro, precisam do nosso apoio mais do que nunca, diante das exigências de renovar constantemente suas práticas, sem levar em consideração as obrigações econômicas que enfrentam. Os cientistas têm um papel importante a desempenhar aqui, transmitindo as mensagens mais claras possíveis sobre o estado de nossos conhecimentos, tanto em termos de ecologia quanto de saúde pública, ao mesmo tempo admitindo os limites desse conhecimento. De fato, embora possam ser constantemente questionados, os resultados da ciência constituem, em um determinado momento, a melhor alavanca para escolhas pragmáticas e ponderadas. Porque a agricultura do futuro nunca experimentará esse “retorno” defendido por certos nostálgicos ingênuos, adeptos do “era melhor antes”; pelo contrário, substituir a química pela biologia para cultivar melhor (porque essa é a verdadeira questão) constitui um enorme desafio científico e tecnológico.

O “Comer bem” para todos

O “Comer bem” só vale a pena se for compartilhado por todos, levando em consideração as diferenças econômicas, culturais e sociais. Porém, com mais de 70% dos alimentos vendidos, a distribuição em massa é o principal local de suprimento para os franceses; sua responsabilidade é importante: alimentar bem os franceses a um preço justo. Mas um sistema poluidor, consumidor de energia, dominado pela industrialização e seus métodos intensivos em que o baixo preço é a preocupação dominante, não deixa de causar problemas em termos de saúde e meio ambiente.

Sob pressão da sociedade, vemos esforços tímidos feitos nas gôndolas “orgânicas”, espaços para produtos locais, trabalho nas formulações de produtos processados ​​e na promoção de alimentos mais saudáveis. Mas ainda há esforços a serem feitos em termos de desperdício, combate a embalagens desnecessárias e / ou enganosas, promoção da rotulagem nutricional, não como uma restrição, mas como uma ferramenta real, que apesar de ainda precisa ser aprimorada. e deve ser acompanhada por uma educação real, pode ser muito útil para o consumidor. Matamos então dois coelhos com uma cajadada, como mostram os estudos científicos: optar por uma dieta nutricionalmente virtuosa também tem um impacto positivo no meio ambiente.

Sejamos claros: a luta, essencial para o “Comer bem”, só pode ser vencida se for realizada coletivamente, com todos os atores do setor, cada um fazendo o melhor que puder, em seu campo, com sua restrições, suas especificações e o que a sociedade espera dele. Temos que sair de divisões sistemáticas estéreis (orgânica vs convencional, artesãos vs industrial, distribuição em massa vs mercados locais): temos que trabalhar COM e não CONTRA, porque todos têm um papel a desempenhar.”

Fonte: https://www.atabula.com/2020/06/15/nous-mangerons-mieux-demain-par-regis-marcon-fanny-agostini-et-christophe-lavelle/?mc_cid=046dca4ac7&mc_eid=afae800fe2

Foto: klimkin